quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Um conto sobre preguiça 3

A Batalha de Abertura


Algum daqueles mundos envenenados de personalidade se dividiu entre suas várias personificações. Surgiu, então, da savana azul, uma entidade chamada Funig. O ambiente, a savana, todo foi idealizado por Funig, ou talvez, se espelhou dela sem ter sido pensado. Era uma árida savana, azul pela pouco luz, seca de poucas tempestades, desvirtuosa de emoções. Funig era a entidade mestra, lá tudo era seu reflexo, e esta, por sua vez, era um reflexo de onde estava. 

Funig passava o dia sentada, esperando desaparecer.Desaparecer parecia melhor que existir, mas para isso seria necessária alguma dor desconhecida, e Funig temia-na. Diferenciar as estrelas parecia mais certo que desaparecer, e era isso que Funig fazia. A entidade passava as horas a arrastar galhos secos no chão, sendo conscientemente vã. O peso de existir fazia Funig espirar gases sórdidos de seu pulmão. Isso matava ainda mais aquela savana. Era uma vilã, segundo alguns, ainda que ela pedisse desculpas por sê-lo.
Algum dia, veio uma tempestade solar. Assoprou toda a poeira velha, e incandesceu os folhas secas. Surgiu Irgen. Irgen era incandescente, queimava o que tocava, feria quem estivesse ao seu redor, inspirava agressividade. Contudp, Irgen tinha enormes poderes. Além de iluminar aquela savana quando chegou, Irgen modificava a realidade. Ao longe, parecia que era o próprio espaço-tempo que vibrava ao redor da nova entidade, o tanto que seu calor parecia transformar o mundo ao seu redor.

Quando Irgen chegou, pôs suas mãos na terra e transformou tudo em fogo. E quando o fogo sessou, surgiu grama, surgiram flores, surgiram mesmo emoções coloridas do chão. Irgen, por onde estivesse, brilhava tanto que se fazia rainha. Enquanto estava lá, ela transformou aquela savana no exato jardim que jamais alguém acreditou que pudesse ser possível de se haver. Contudo, Irgen era tirana, e queimava tudo o que sai de seus planos -transformava as folhas caidas e as pedras quebradas em carvão.

Quando Irgen surgiu, Funig queimou no vão que se abriu em si mesma. Mas ela não deixou de existir. Funig está fadada à imortalidade, enquanto seu mundo existir. Entretanto, Irgen a ignorava. Irgen construiu um império sob seu total controle. E para controlá-lo, ela queimava tudo o que se atrevesse a desafiá-la. Ela se ocupava de criar todos seus caprichos por conta própria, e construí-los ou destruí-los segundo seus desejos.

De tanta força que Irgen usava, de tanto calor que ela liberava, naquele jardim não pousavam mais pássaros, a chuva evaporava antes de refrescar o chão, as flores secavam de calor. Irgen, rezavam os visitantes, era impiedosa e cruel.

Mas eventualmente, Irgen se cansou e adormeceu. Sentiu que transformar o mundo drenava-a.

Foi o momento em que Funig ressurgiu. Funig absorveu toda aquela energia, enquanto Irgen dormia. Funig virou uma enorme bolha de tanta energia que recolheu do ambiente, e este, por sua vez, começou a virar uma savana novamente.

Durante seu sono, choveu algumas emoções em Irgen. Ao despertar, Irgen viu que todo seu jardim se esvaziara de vida. E Irgen percebeu que havia uma responsável por isso.

-O que fizestes com meu jardim, ser perdido? -começou a se esquentar Irgen com Funig.
-Nada. Só tava ali. Tive medo de sair e perder tudo, então achei melhor engolir tudo antes de sumir.
-Isso não faz sentido! Como alguém pode engolir meus feitos? Devolva-os imediatamente!

Mas Irgen não sabe que Funig é incapaz de qualquer coisa, a não ser absorver e desenhar na areia. Não poderia devolver o  que ela havia absorvido. Funig, sentada, olhou para Irgen sem nada dizer.

-Se não me devolveres, tomo-lhe a força! -enfureceu-se Irgen. Sua fúria a fez brilhar. Seu brilho incandescente aumentou. Ela foi em direção a Funig e meteu a mão em seu coração. Funig era gelatinosa, enquanto Irgen era como fogo. Funig, sem nada fazer, apagou a mão de Irgen, que olhou assustada a sua impotência repentina.

-Estás a me desafiar? Ninguém me vence! -bradou Irgen. Funig a olhava indiferentemente. Irgen repetiu o golpe, porém nada mudava. Ela reacendia suas mãos a cada apagar, mas Funig também não sentia diferença.

No fundo, Funig achou que talvez fosse uma boa oportunidade de deixar de existir. Talvez o mundo devesse pertencer àquela figura forte, que por catástrofes transformava-o. Ela fechou os olhos e aguardou. A sua indiferença fez Irgen ainda mais brilhante. Socava-lhe o peito furiosa em vão. Em uma última tentativa, Irgen se jogou dentro da enorme figura de Funig. Sem ar, Irgen começou a desaparecer. Ela sentiu um enorme desespero, naqueli que parecia ser seus últimos instantes.

-Como, eu, senhora desse mundo, posso ser derrotada tão facilmente? Não, isso não é possível!


A savana escurecida, azulada, tinha, como único ponto de luz amarelada, Irgen dentro da enorme forma gelatinosa de Funig. A voz de comando de Irgen foi abafada, derrotada pela preguiça de resistir de Funig. Funig ainda tinha a esperança de não existir, dentro de si.

continua...





terça-feira, 18 de novembro de 2014

As Dúvidas

de uma mente sem lembrança, pode?


Em algum dia esquecível, mas fatídico, eu duvidei. Eu não sei depois o que aconteceu, mas sei que ainda duvido. Eu duvidei tanto que é meu moto-continuo. Tudo se apresenta para mim como um tufão, que impede que eu toque certezas me assoprando para o longe; me faz voar e enxergar dessignificados.

Dessignificados. Tudo se despe. Sobra algum fluido qualquer, que me lembra que, se o que eu duvido foi feito por uma pessoa, então foi feito por uma pessoa. Transmitimos ideias, criamos padrões, comunicamo-nos, damos valores, avaliamos -tudo duvido.

Contudo isso está tudo perdido na minha mente. Enquanto o mundo gira em valores aceitos, eu não os consigo tocar. Eu estou presa, num mundo onde o valor é uma fumaça, onde a a dúvida, ou experiência, é a moeda de troca que a minha mente me pede para continuar existindo. Graças aos céus, eu posso negociar com esta. Ainda sinto que meus abrigos estão nela. Meus abrigos, mas não eu.



-engraçado é que...

Um dia eu duvidei da mente. Ela quase deixou de existir (e não eu). E esse foi outro dia fatídico, talvez até inesquecível.

Todavia, a mente se regenera na dúvida, seu meio.

Para que eu ainda tivesse um pedaço de terra nesse caos que é o lado de fora, eu tive que me assemelhar a ele. Agora eu caço dúvidas.

-


É isso. Eu caço dúvida, pois, do contrário, eu não existo aqui fora. Eu seria apenas completa na minha desavaliação e dessignificância desmentidas. Por isso duvido tanto, e talvez me conheçam segundo minhas dúvidas.


(sem mente, talvez apenas ouvisse música e colhesse flores)